A Medicina Europeia ao Brasil
Isso é uma história, talvez inédita, sobre as origens da prática médica europeia, como ela chegou ao Brasil e (parte 2) desenvolveu a partir daí.
Embora Portugal desencorajasse o desenvolvimento das ciências médicas fora das suas instituições nacionais, a medicina brasileira atual excede em muito a medicina portuguesa e replica os mesmos padrões ocidentais, que têm suas raízes em 2.500 anos de tradição. Portanto, começarmos a história com a medicina do velho continente para contextualizar a do Brasil.
Medicina Grega e Romana
Existiam diversas influências na tradição médica dos povos mediterrâneos, mas, na Grécia Antiga, Alcméon (Alcmeão) de Crotona (c. 510 a.C.) foi o médico que originou a prática empírica. Como empirista, ele realizou a primeira dissecação de um cadáver humano e teorizou que os processos fisiológicos dão origem às sensações. Ele apontou ao cérebro como o órgão controlador das funções do corpo e a sede da consciência e inteligência. Suas teorias influenciaram as de Hipócrates, Aristóteles, Herófilo e Erasístrato que eram as principais figuras na medicina grega.
Os Asclepíades
Tanto na Grécia quanto no antigo Império Romano, Asclépio (ou Esculápio), filho de Apolo, foi um herói que virou deus da medicina e da cura. Sendo assim, sua popularidade fez Asclépio o deus pagão mais importante do mundo greco-romano nos primórdios da Era cristã. Em sua homenagem foram construídos centenas de Asclepieia — templos de cura — e, consequentemente, os hospitais primordiais.
Durante a Antiguidade Clássica, quando o paganismo dominava, as inovações mais citadas na prática médica vieram de dois asclepíades (discípulos de Asclépio): Hipócrates de Cós (460 — 370 a.C.) e Asclepíades de Bitínia (129 — 40 a.C.). Hipócrates deu início ao Corpus Hippocraticum, uma coleção de obras que fundou a prática Ocidental, à observação clínica e à Teoria de Humorismo, propagado por dois milênios. Ademais, o Juramento de Hipócrates, adaptado ao longo dos séculos, é recitado por médicos ao redor do mundo até hoje.
“Mesmo que outros antes dele, como Alcmeão de Crotona, também tivessem começado a abordar a medicina de maneira racional… Hipócrates veio a ser conhecido como o pai da medicina moderna.” — worldhistory.org
Após 146 a.C., Grécia perdeu independência à Roma; entretanto, os asclepíades foram bem-sucedidos em se estabelecer na nova sociedade. Eram vistos com bons olhos pelos romanos que construiriam os Templos de Apolo e de Asclépio para invocar seus poderes na luta contra pragas e epidemias. No último século a.C., acredita-se que Asclepíades de Bitínia trouxe sabedorias e técnicas médicas de Grécia para Roma. Ademais, ele classificou doenças como agudas ou crônicas e estabeleceu a primeira teoria de homeostase, sendo citado por gerações de médicos a vir.
Galeno
Nos primeiros séculos da era comum, os asclepíades do Império Romano estabeleceram a prática que se espalhou pelo continente europeia. Nesse período, chamado de Pax Romana, destacaram-se o trabalho de Escribônio Largo, Dioscórides e Celso; porém, suas obras obtiveram menos impacto que as do Cláudio Galeno de Pérgamo (129-216 d.C.). Após estudando em Alexandria (o então “Meca do conhecimento”) e ao redor do mediterrâneo, Galeno mudou-se para Roma onde atendeu aos gladiadores e, no seu cargo definitivo, três imperadores. Nessa época, acredita-se que ele escreveu mais que 400 obras, das quais 150 sobraram: cada uma essencial para o reconhecimento do trabalho dos médicos anteriores. Por mais de 1500 anos, os tratados de Galeno foram lidos e estudados em toda a Europa.
O Limiar da Medicina Romana
Com a crescente popularidade da fé cristã e os taumaturgos — “fazedores de milagres” — Gregório (213 — 270 d.C.), Cosme e Damião (†303) e Nicolau (†350), tornou-se impossível de separar a prática médica da cura pela fé no mundo romano.
Após 380 d.C., quando o Império criminalizou crenças pagãos e fundou a Igreja estatal, os responsáveis para a cura e a saúde tornaria os padres e monges, definitivamente. Esses empregavam os métodos que a fé permitia e a medicina herbal, ao lado de boticários.
“Os especialistas médicos romanos seguiram os passos de seus antecessores gregos, documentaram essa tradição anterior para o bem da posteridade e fizeram avanços… em cirurgia e conhecimento anatômico.” — worldhistory.org
Medicina Medieval
Em 426 d.C., todo santuário com origem pagão no Império do Oriente foi fechado (incluindo as Asclepieia) por mandato do imperador bizantino Teodósio II. Visto que a Igreja Católica condenava pesquisas científicas, a medicina medieval europeia não evoluiu muito, além dos novos remédios botânicos e do estabelecimento de novos espaços para atendimentos sancionados pela Igreja. Somado a isso, a destruição da Biblioteca de Alexandria e a decadência de outros centros de conhecimento (Bendosabora, a Escola de Nísibis e Pergamo) durante o século VII apagavam grande parte da história da medicina antiga. No entanto, foram os estudiosos bizantinos e sassânidas (persas) que preservaram e progrediram a prática médica europeia enquanto o ocidente estava englobado na Idade das Trevas. Essa “idade média” durou um milénio entre a falência do Império e o surgimento do pensamento secular científico (veja Humanismo renascentista e Revolução Científica) no século XVI.
As primeiras hospitais modernas surgiram no século VIII, entre o Império Bizantino e Pérsia (controlado pelo Califado Omíada). Nesse cenário, os médicos bizantinos e persas Paulo de Égina, Al-Razi, Haly Abbas e Avicena (séculos VII — IX) deram origem aos futuros textos centrais na educação médica ocidental e, hoje, medicina baseada em evidências (EBM).
“Em grande medida, o crédito por todo o sistema hospitalar deve ser atribuído à Pérsia.” — Cyril Elgood
A primeira escola de medicina europeia surgiu-se na Península Itálica no século IX. A Escola Médica Salernitana procurou manter “a tradição cultural greco-romana, combinando-a harmoniosamente com as culturas árabe e judaica” e alcançou esplendor nos quatro séculos que seguiram. Entre os autores de textos médicos na Europa medieval, destacam-se os professores Constantino, o Africano (1018–1087) e Alfano I (†1085), que traduziram obras médicas do árabe, persa e grego para o latim. A escola também incluiu mulheres na prática, algo já comum na tradição árabe.
Por último, a Europa medieval influenciou a medicina brasileira através da evolução de português, a partir de latim. Um bom exemplo disso é a palavra “saúde” que vem de “salude”, um vocábulo do século XIII, tendo sido modificado da palavra espanhola “salud” e italiana “salute”. Outra palavra para destacar é “Doutor” que vem do latim “docēre” (ensinar):
No fim do estudo universitário… originalmente exclusiva da igreja… se intitulava doutor e tinha o direito de ensinar na academia médica… No ano de 1221, o imperador Frederico II da Itália declarou que ninguém poderia se tornar médico sem ser examinado publicamente pelos mestres de Salerno… Há 900 anos se usa o termo Doutor em Medicina para o graduado em medicina. Só no século XIX que o termo doutor começou a designar os doutorados. [1,2,3]
A Medicina Português
Até a formação da Estado-nação portuguesa, povos árabes (Califado Omíada e mouros) ocupavam a Península Ibérica (conhecido como Al-Andalus), e há evidência significativa que novos instrumentos e cirurgias foram trazidos ao território português nesses séculos. No século X, por exemplo, o desempenho dos médicos andalusinos, como Hasdai ibn Shaprut, Ibne Albaitar e, particularmente, Abulcasis, demonstrou o grande atraso da medicina europeia em relação à do mundo islâmico, que permitia a pluralidade das crenças e valorizava as ciências. Contudo, o Portugal não se beneficiaria desses avanços médicos, justamente por ser uma nação estritamente católica e a por ser brutal em seu colonialismo posterior.
A reconquista da Península Ibérica aos mouros também disponibilizou para os eruditos europeus um grande acervo de textos [gregos]… preservados em traduções árabes e desconhecidos na Europa, e de obras muçulmanas de Avicena, Geber e Averróis, contribuindo de modo marcante para um novo florescimento na filosofia, matemática, medicina e outras especialidades científicas. [1,2,3,4]
Antes da nação ser estabelecida, em 1131, a primeira escola de medicina e hospital portucalense surgiu em Coimbra no Mosteiro de Santa Cruz. A partir de então, durante a formação do Reino do Portugal, mais mosteiros católicos com salas para atender à saúde dos fiéis foram construídos.
Cem anos depois, um “Doutor da Igreja” que tinha formado em medicina pelo Mosteiro de Santa Cruz foi santificado: Santo Antônio de Lisboa (†1231). Notavelmente, Antônio mostrou, ao longo da sua prática, conhecimento inigualável das ciências naturais e médicas — algo ignorado pela igreja na sua veneração e na geração de folclore. Na mesma época, dois outros taumaturgos portugueses, São Gonçalo de Amarante (1187–1262) e Papa João XXI de Lisboa (†1277) reforçaram a ideia que a fé cristão era responsável para a manutenção da saúde. O segundo desenvolveu sua carreira como acadêmico na França e Itália, e, entre 1273 e 1275, tornou-se o médico chefe do Papa Gregório X antes de ser pontificado.
Diante desse cenário, em 1290, a Universidade de Coimbra foi fundada, integrando o mosteiro na sua primeira Faculdade de Medicina. Nos próximos séculos a faculdade mudou-se entre Coimbra e Lisboa e manteve-se como única escola médica de Portugal até 1825. Coincidentemente, práticas medievais como trepanação, sangria e êmese (fundadas por crenças humoristas) prevaleceram no país até a mesma época.
A Peste Negra
Entre 1347 e 1353, a Peste Negra exterminou cerca de 30% da população da Europa, e seu impacto na história da medicina portuguesa foi profundo. A mortalidade atingiu entre 50 e 65% das pessoas que contraíram a doença e “as autoridades e as populações foram apanhadas desprevenidas e não sabiam muito bem como agir”. No entanto, os portugueses aprenderam com os acontecimentos e procuraram proteger-se de surtos posteriores. Pela primeira vez na história, foram implementados quarentenas portuárias, tratados de peste, cordões sanitários primitivos e limpeza pública (tudo para evitar a suposta corrupção do ar por miasmas pestilenciais). Isso refletiu um reconhecimento generalizado da incapacidade de curar a doença, algo que enfraqueceu a autoridade da igreja sobre temas médicos por diante. Também, visto que o peste foi ininteligível, isso se tornou uma inspiração para várias teorias seculares que procuravam explicar como doenças poderiam ser transmissíveis.
O Renascimento Cultural
O “Renascimento” era um movimento do burguês (italiano, em particular) entre os séculos XV e XVI que financiou novos talentos e expôs intelectuais europeias a novas ideias. Um dos primeiros talentos, que representa a essência do movimento, era o Leonardo Da Vinci (1452–1519). Suas obras obtiveram menos fama na história da medicina, mas o gênio fez descobertas em praticamente todas as áreas do conhecimento.
Infelizmente, seus desenhos anatômicas (acima)— de processos ainda impossível de se ver — não foram publicados até 380 anos após sua morte. Entretanto, seus outros estudos, devidamente reconhecidos, provocaram uma mudança de paradigma nas ciências biológicas europeias.
“Havia muitos anatomistas investigativos na época, e havia muitos artistas interessados em anatomia. Mas Leonardo levou essas duas coisas mais longe do que qualquer outra pessoa… Foi a união dessas duas habilidades em uma única figura que tornou Leonardo único.” — BBC
A prensa móvel também revolucionou essa época de descobrimentos, uma vez que todas as obras escritas de antiguidade podiam ser copiadas inúmeras vezes e a obtenção de nova informação tornou-se mais acessível. Para a medicina, isso permitiu que pesquisadores e praticantes disseminassem suas descobertas entre sua população dispersa.
Assim como antes, a maioria dessas descobertas vieram das persas e dos árabes, desfazendo séculos de atraso na Europa. Prova disso é a tradução de Ibn al-Nafis (1210–1288) por Andrea Alpago publicada em 1547, cujo conteúdo foi tomado por Miguel Servet em 1553, por Andreas Vesalius em 1555 e, ainda depois, por William Harvey em 1628. Esses últimos três sendo os médicos mais famosos do movimento, creditados por finalmente desafiarem as teorias de Galeno após 1500 anos, embora al-Nafīs tenha conquistado esse reconhecimento entre historiadores de hoje.
Catolicismo X Ciência em Portugal
Mesmo assim, vale ressaltar que, nos Estados Católicos, os proponentes de teses contrárias às explicações da Igreja foram condenados à morte. E Portugal era terra fértil para a Inquisição. Em conjunto, a Contrarreforma e a União Ibérica (1580–1640) fortaleceram a Inquisição nos Reinos de Hispânia, a qual ameaçou intelectuais portugueses que não eram cristãos-velhos (considerado “genuínos”), incluindo luso-brasileiros. Entre o século XV e XVI, os médicos portugueses que não eram cristãos-velhos buscaram sucesso fora do metrópole (e.g. Judá Abravanel, Garcia de Orta, Christobal Acosta, Rodrigo Lopes, Francisco Sanches, Manuel Bocarro e António Nunes) ou foram exilados, deixando apenas os fiéis católicos à prática.
Por esse motivo acima de todos, até 1821, Portugal não se desenvolveu, de forma plena, sua própria ciência médica.
As Santas Casas das Misericórdias
Em 1498, por estímulo do Rei Manuel I de Portugal e Rainha D. Leonor, houve a criação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa — a primeira legítima ONG do mundo, em um tempo em que seria impensável a existência de uma instituição social não governamental. Foi destinada a atender a população mais destituída, com funções como alimentar os famintos, assistir aos enfermos, consolar os tristes, educar os enjeitados, e prestar assistência aos órfãos recém-nascidos. No mesmo período (1492–1504), foi construído o Hospital Real de Todos os Santos — o primeiro do Portugal — que integrou-se com a Santa Casa de Lisboa a partir de 1564.
Já com a expansão ultramarina do Império Português na mesma época, as Misericórdias foram implementadas, como ONGs, no Brasil. A primeira de ser inaugurado foi a Santa Casa de Misericórdia de Olinda (1540) que atendeu os enfermos dos navios dos portos e outros luso-brasileiros. Logo depois, em 1543, 2.000km ao sul, foi fundada a Santa Casa de Misericórdia de Santos, mais um hospital sem fins lucrativos — mesmo tendo sido financiado por conta própria de Brás Cubas. De fato, essa instituição assistencial e hospitalar é a mais antiga em funcionamento do Brasil.
Chegamos ao fim de parte 1. Agora é só aguardar até que a parte 2 se disponibilize… em breve! Obrigado por ler ❤ ~ Stu